Século Ilustrado 25 Setembro 1965 |
UM MUSEU DE COMUNIDADE
Memórias do Ti’Alex na Associação Recreativa e Cultural da Praia da Assenta
Joaquim Moedas Duarte (Publicado na página PATRIMÓNIOS, semanário BADALADAS, Torres Vedras, 27 Agosto 2021)
Tenho nas mãos o Diploma que atesta que Alexandre Afonso completou, em 5h.
41m. e 18s, a 1ª Maratona de Torres Vedras, no dia 12 de Outubro de 1980.
Espanto-me com a marca: é mais do dobro que um atleta mediano demora a
percorrer os 42,195 km da Maratona. A explicação está numa nota manuscrita, no
reverso do Diploma: «O atleta mais idoso que percorreu a Maratona no nosso
país. Alexandre Afonso um jovem recordista português aos 68 anos. Mais do que
um Diploma, o presente certificado é um hino de louvor à eterna juventude de
espírito». Assina, pela Organização, António Fortunato – torriense que é hoje,
quarenta e um anos depois, o atleta veterano mais medalhado de
Portugal.
Este Diploma é ums muitos documentos que fazem parte do espólio doado por Alexandre Afonso – que todos conheciam por Ti‘Alex – à Associação Recreativa e Cultural da Praia da Assenta, povoação da freguesia de S. Pedro da Cadeira. Acto de doação que foi uma forma de reconhecimento pela comunidade que o acolheu no crepúsculo da sua vida e onde, pela primeira vez, já com 65 anos, participou numa corrida de atletismo entre Cambelas e Assenta. Do espólio fazem parte vários dossiês que Ti’Alex foi organizando ao longo da vida para guardar os programas das provas, as fotos e os recortes de jornais que lhe faziam referência. E também dezenas de medalhas, troféus, placas distintivas, recordações. Imagens do legítimo orgulho de um homem que pintou a vida com as cores da alegria e da convivialidade, até ao dia 21 de Junho de 1989, quando a morte o levou à derradeira meta.
Durante algumas horas compulsei este espólio magnífico, levado pela
curiosidade e pelo fascínio. É que eu ainda me lembrava de ter visto o Ti’Alex
numa das Maratonas de Torres Vedras, meados dos anos 80, no seu passo
cadenciado, ar prazenteiro, já muito atrasado – era quase sempre o último a
chegar –feliz por competir e nunca desistir, de tal modo que os organizadores
das provas não permitiam que se fechassem as classificações finais sem que ele
chegasse. “Ninguém se vai embora, falta chegar o Ti’Alex!”. E ele chegava, num
cansaço controlado que lhe permitia ainda fazer o seu número final: puxava de
uma pequena “gaita de beiços” que trazia no bolso e tocava duas ou três
modinhas populares, por entre risos e festejos de quem se encantava com este
campeão da vida.
Os dossiês que referi acima não dizem respeito apenas ao atletismo – até
porque este chegou tardiamente à vida de Alexandre Afonso – eles documentam a
outra faceta notabilíssima deste homem, a de músico. E a culpa foi do pai que
lhe ofereceu, como prémio do exame da 4ª classe, uma pequena harmónica bocal
que o rapazito logo aprendeu a tocar com grande perícia.
A ORQUESTRA ALDRABÓFONA
Em meados dos anos 30, em Lisboa, cerca de vinte rapazes divertidos, um tanto extravagantes e executantes musicais de instrumentos diversos, constituiu-se como agrupamento musical com o nome de Orquestra Aldrabófona. Iam para o palco e durante hora e meia, divertiam-se e divertiam o público com peças musicais, piadas, anedotas, gagues e o mais que a inventiva criava em cada momento. Durante esses anos e até meados dos anos 40 tiveram sucessos estrondosos, actuando em Lisboa e por todo o país. Não aceitavam honorários, divertiam-se e contribuíam, não raro, para festas de beneficência. Alexandre Afonso fez parte deste grupo, com a sua harmónica bocal. Destacava-se pelo virtuosismo da execução e pela boa disposição permanente. Mais tarde, quando a orquestra se dissolveu, associou-se com outro aldrabófono – Fernando Pires dos Santos –, também “gaitista” de mérito, e constituíram o grupo Manos Alexandres. A fraternidade não era de sangue mas de cumplicidade no gosto pela música. Durante vinte e cinco anos actuaram em centenas de espectáculos, desde os mais singelos nas colectividades lisboetas até aos Serões para Trabalhadores, da Emissora Nacional. E não ficaram por aqui: lançaram-se numa carreira internacional e chegaram a ganhar um Campeonato do Mundo de Harmónicas Bocais, na Suiça. O grupo terminou em apoteose numa Festa de Homenagem no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, corria o ano de 1960.
MUSEUS DE COMUNIDADE
De tudo o que atrás se escreveu dá conta o espólio do Ti’ Alex, à guarda da Associação Recreativa e Cultural da Praia da Assenta. Dona Maria dos Anjos Ruivo foi quem nos guiou na visita, zeladora daquelas memórias mas receosa dos novos tempos que afastam a juventude destas preocupações patrimoniais. Que será deste manancial quando ela já não puder visitá-lo? Quando os admiradores do Ti’Alex se despedirem da vida e já ninguém sentir o apelo da preservação da memória? Também a nós, Associação do Património, chega esta preocupação, que não se restringe ao que se passa na Assenta mas em outros locais do nosso concelho, onde o amor pela salvaguarda de testemunhos do passado levou à criação de pequenos “museus de comunidade”. Eles subsistem enquanto os seus criadores estão vivos mas correm risco de se perderem quando desaparecerem aqueles. Não é fenómeno exclusivo de Torres Vedras. Por todo o país, desde há muitos anos, têm surgido estes pequenos museus que funcionam como lugares de memória onde as populações locais se revêm e encontram laços de identificação comunitária. Não por acaso a Universidade de Aveiro publicou em 2019 um livro intitulado “Museus de Comunidade: Manual de Apoio à Gestão”, de Luís Mota Figueira e Dina Ramos, dois investigadores que têm estudado este assunto. É uma reflexão teórica e um manancial de indicações práticas que procura responder às preocupações dos guardadores de memórias. Sendo certo que nas sedes de muitos concelhos já existem Museus Municipais – como o nosso Museu Leonel Trindade – parece-me que o seu papel não se deve limitar às existências próprias mas pode alargar-se a outras expressões museológicas do espaço concelhio, integrando os museus de comunidade num projecto de rede museológica que contribua para o enriquecimento cultural das comunidades locais e garanta a preservação dos espólios existentes.
Diário de Notícias magazine 28 Dezembro 1986 |
Que du bonheur , merci Gildo
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